Friday, November 5, 2010

MEU MICHEL - A CARACTERIZAÇÃO DE ASPECTOS DE ROMANCE

Meu Michel
מיכאל שלי

A caracterização de elementos básicos de um romance dentro da problematização metafórica da realidade israelense através do fluxo de consciência e da deterioração psicológica de um narrador autodiegético




Por

Fabiano Antonio Ferreira
Aluno do Curso Português-Hebraico








Trabalho apresentado na disciplina de Literatura Hebraica III










UFRJ UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
2o Semestre/1999


Aqui está um trabalhinho que apresentei na UFRJ, na disciplina de Literatura Hebraica III, no Segundo Semestre de 1999. Para quem estudou, quer estudar ou gosta de Teoria Literária, aqui está uma abordagem muito interessante que pode ser aplicada não apenas ao romance MEU MICHEL, mas a qualquer outro. A terminologia é um pouco densa para quem não conhece nada do assunto, porém, procurei dar as definições dos termos e fazer suas aplicações.




Meu Michel


A caracterização de elementos básicos de um romance dentro da problematização metafórica da realidade israelense através do fluxo de consciência e da deterioração psicológica de um narrador autodiegético

I - Introdução

        Meu Michel, como romance, deve ser uma forma de narrativa que, embora sem nenhuma relação genética com a epopéia, a ela equivale nos tempos modernos. Contrapõe-se à epopéia, como forma de representação de mundo, pois se volta para o homem como indivíduo, sendo calcado no fluxo de consciência e nas análises psicológicas na forma de ficção-ensaio, desrealizando a realidade.
        Nesta caracterização, mostrarei que Meu Michel possui os elementos estruturadores de um romance, a saber: enredo, personagens, tempo, espaço e ponto de vista da narrativa.

II - O Enredo

        O enredo, também designado de trama ou intriga, é o resultado da ação das personagens, só adquirindo existência através do discurso narrativo, daquele modo especial com que se organizam os acontecimentos.
        O que confere unidade aos elementos da trama é o tema, entendido como idéia comum, que constrói um sentido pela união de elementos mínimos da obra, chamado motivos.
        O tema de Meu Michel se confunde com a problemática das tensas relações entre Jerusalém (metonímia para Israel) e seus inimigos, que culminam, por exemplo, na Guerra do Sinai. O desenvolvimento da deterioração psicológica da personagem Hana Gonen representa uma miniaturização dos conflitos externos de Jerusalém com todas as suas consequências. Hana sofre gradualmente de uma deterioração psicológica que a faz vaguear em Angst (angústia profunda) entre a realidade e o universo quase unipessoal de seus sonhos.
        Meu Michel é a história de Hana Gonen, a esposa de Michel Gonen, um geólogo, que oscila entre a transmissão da cosmovisão sensibilíssima de uma mulher que se refugia em sonhos para suportar a realidade e a cosmovisão matemática, calculista e gélida de um cientista. Hana tem sua interioridade invadida por forças que a afugentam da realidade, arrebatando-a para o mundo recriado de seus sonhos. Seu marido é imperturbável, tranqüilo, como ela mesma observa. Isto reforça sua Angst, de modo que a fuga é inevitável, principalmente quando chega a guerra.
        Os destroços da desintegração psicológica de Hana têm como macrocosmo as conseqüências da guerra, e é trabalhado pelo autor do romance, Amos Oz, de um modo inteligente e magistral. Há uma impregnação mútua relacionando o mundo de Hana e Jerusalém. Hana e Michel são a essência tipológica dos dois modos extremos de como a realidade israelense pode ser encarada, sensível ou insensivelmente, pois a guerra é um constante devir.
        O refúgio de Hana no mundo dos sonhos pode ser encarado como a procura da possibilidade de um posicionamento dialético,  pode ser equiparada à procura da terceira margem do rio pelo personagem de Guimarães Rosa. Por conseguinte, tensões, distorções, conflitos e contradições permeiam o mundo em desmoronamento de Hana Gonen, reproduzindo metaforicamente o macrocosmo referente, a realidade Israelense, de maneira individualizada e personificada.
        A ausência de desenvolvimento de relações interpessoais autênticas por Hana dentro da estrutura da diegese é, por parte do Autor, uma opção bastante funcional e de grande eficácia ideológica, pois é um forte indicador textual não só da impossibilidade de solução do desmoronamento psicológico de Hana, como também da questão dos temíveis e constantes conflitos entre Jerusalém e seus inimigos ou pseudo-amigos.   
        Além dos fatos que fazem progredir vagarosamente a diegese, Meu Michel apresenta ainda descrições, com as quais se representam personagens, objetos, espaço... e que assumem, muitas vezes, uma função diegética importante, quando se tornam imprescindíveis, tendo em vista o grande investimento do romancista na relação entre o espaço físico (modificado pela visão deformada e fantasmagórica de Hana) e o humano (frustrador na realidade e idealizado em seus sonhos como subserviente ao seu caráter possessivo e dominador).
       
III - As Personagens

        As personagens funcionam como agentes da narrativa. Isto porque depende delas o sentidos das ações que compõem a trama.
        Em sua ficcionalidade, a personagem guarda sempre uma dimensão psicológica, moral e sociológica. É praticamente impossível ignorar essas dimensões sem reduzir a abordagem da personagem a um esquema meramente funcional.
        Destacam-se do elenco de personagens de um romance o narrador e o narratário. O primeiro jamais poderá ser confundido com o Autor; é já uma criação deste e, portanto, elemento de ficção. Trata-se o segundo do receptor da narrativa, aquele a quem, por exemplo, se dirige o narrador. Assim, em Meu Michel, podemos citar Hana como narradora, e Michel como narratário. O leitor, ainda quando não identificado na narrativa, mas presumível pelos esclarecimentos de que o narrador lança mão no decorrer da narrativa, pode ser denominado como narratário extradiegético.
        Por outro lado, quando o narratário participa da narrativa como personagem concreta (interveniente na trama como Michel ou apenas narratário como os pais de Michel e os de Hana), podemos designá-lo como narratário intradiegético.
        Visto que Hana se projeta como protagonista em Meu Michel, impondo-se como narrador autodiegético, sempre a vemos ocupando o centro dos acontecimentos. Ela é retratada minuciosamente, tanto no aspecto físico como no psicológico, e a partir dela se dão a conhecer todas as outras personagens.
        As demais personagens de Meu Michel possuem retratos menos detalhados do que o de Hana, mas compostos de traços suficientemente significativos para transmitir os relacionamentos humanos e até a ideologia da obra. Tão importante quanto caracterizar as personagens é buscar a funcionalidade de seus caracteres.
        Deste modo, a hipersensibilidade de Hana, derivada de uma natural sensibilidade feminina aliada à sua formação em literatura, é sempre contraposta à frieza insensível de seu marido cientista. Toda trama é perpassada por essa contraposição. Nada abala a estrutura psicológica de Michel, nem a guerra e nem mesmo as chantagens frustradas de Hana, cada vez mais propensa ao desabamento psíquico.

IV - O Tempo

        Toda narrativa desenrola-se dentro do fluxo do tempo, tanto no plano da diegese, quanto no do discurso (que conforma a diegese); pois este se organiza como sucessão de palavras e frases, que podem apresentar os fatos cronologicamente ou não.
        São marcas textuais do tempo da diegese as referências a dias, meses, horas, anos, ao ritmo das estações ou a determinada época. Em Meu Michel, a constante referência a datas já nos sugere a extensão temporal da diegese: "Janeiro de 1960"; "no mês de março".
        Meu Michel está eivado de anacronias, pois há o desencontro frequente do desenrolar cronológico da diegese e a sucessão, no discurso, dos acontecimentos. Temos o caso de narrativa in media res, visto que o começo do discurso equivale a uma fase já avançada da diegese: "Escrevo porque pessoas que amei já morreram. Escrevo porque quando era jovem, tinha dentro de mim muita força para amar e, agora, meu poder de amar está morrendo", p. 9.
        O tempo psicológico é construído em inúmeras instâncias do texto, porquanto acontecimentos narrados em várias páginas podem ter ocorrido em poucos minutos, o que nos permite perceber o tempo interior. Para tanto, um dos recursos muito utilizado é o monólogo interior. Este, como todo monólogo, não tem intervenções e se diferencia do monólogo tradicional por apresentar o que há na personagem de mais íntimo, mais próximo do inconsciente e, portanto, sem uma organização lógica.

V - O Espaço

        Também denominado ambiente, cenário ou localização, o espaço é o conjunto de elementos da paisagem exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico), onde se situam as ações das personagens. É ele imprescindível, pois não funciona apenas como pano de fundo, mas influencia diretamente no desenvolvimento do enredo, unindo-se ao tempo.
        Todos os elementos de Meu Michel estão ligados à Jerusalém, que circunscreve todo o movimento das personagens e serve-lhes como ponto de convergência ou centrifugação, como também centraliza seus pensamentos e sentimentos: "Na minha Jerusalém, inverno é inverno... ", p. 11; "Jerusalém está se espalhando: estradas", p. 179"; "Fomos passar a festa na Galiléia... Longe de Jerusalém. Longe das ruelas", p. 182.

VI - O Ponto de Vista
       
        Por ponto de vista, foco narrativo ou focalização, entendemos a relação entre o narrador e o universo diegético e ainda entre o narrador e o narratário.
        Temos em Meu Michel focalização homodiegética, em que o narrador participa como agente da diegese romanesca: "Meu marido Michel Gonen me dedicou seu primeiro artigo, publicado em uma revista científica",  p. 92.
        Há focalização interna, quando o narrador apresenta o que se passa na interioridade das personagens: "Michel abriu a boca espantado, começou a dizer algo, hesitou e desistiu... Meu marido está convicto de que ele e seu filho estão destinados a serem amigos de corpo e alma", p. 67.
        Constatamos também a presença de focalização onisciente, quando o narrador conhece tudo em relação às personagens e aos eventos: "Por isso, toda noite, Michel ia, arrumado e limpo, para o quarto de Yardena, no conjunto residencial dos estudantes. Confesso que foi tudo muito ridículo. No fundo eu sempre esperei por isso. Não me alarmei", p. 187.
        Por último, detectamos o caso da focalização estereoscópica, quando o mesmo acontecimento recebe diferentes interpretações: "  ---- Mãos frias e testa febril. Você está doente (Hana)... Na cozinha preparou um chá com leite, adoçando-o com duas colherinhas de mel. Não pude engolir. Minha garganta ardia com fogo. Era uma dor nova. Alegrei-me com a nova dor à medida que ela aumentava", p. 131.
        Em suma, a focalização em Meu Michel é: homodiegética, interna, onisciente e estereoscópica.

VI - Conclusão

        Deste modo, concluo a caracterização de Meu Michel como romance, tendo demonstrado que ele possui todos os elementos estruturadores de um romance, a saber: enredo, personagens, tempo, espaço e ponto de vista da narrativa.
        Seguindo a estrutura da diegese romanesca, em seu todo é explorada a manifestação livre do fluxo incontrolável de consciência de Hana, a narradora homodiegética, que naufraga no mar de inconsciência e ilogicidade ao fim da diegese. De fato, temos em Meu Michel uma problematização metafórica da realidade israelense através do fluxo de consciência e da deterioração psicológica de um narrador autodiegético, Hana Gonen. No desfecho, sua Angst assume proporções tão insuportáveis, retratadas pelo mergulho inexorável de Hana no mundo dos sonhos, pois pode ser que surja ali a condição de alívio da dor imposta pela implacável realidade.
        Ao término da história, o mundo dos sonhos de Hana invade e domina a realidade, sendo tal invasão caracterizada pela sobreposição de tempo e espaço, gerando um verdadeiro caos. Hana sucumbe à deterioração de sua psique, pois mesmo no mundo dos sonhos percebe-se a total ilogicidade, falta de ordem e de controle, vazada por antíteses e contradições: "A umidade do orvalho e do vento. E então, de repente e não de repente, trovejará o brilho de uma explosão surda", p. 190.
        Finalmente, a guerra, a frustração e a "traição" --- toda a dor do mundo real --- conseguem afugentá-la definitivamente da realidade. E seu último vaticínio, ou delírio, prediz: "E sobre espaços amplos descerá uma fria paz", p. 190.




Bibliografia

DE AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da  Li-
        teratura. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, 817 pp.
MOISÉS, Massaud. A criação literária - prosa. São
        Paulo: Melhoramentos, 1979.
OZ, Amos. Meu Michel. São Paulo: Conpanhia das Letras, 1999.

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