Ilustrando o Papel das Línguas Originais da Bíblia (I): Hebraico
A palavra אֱלֹהִים sempre significa Deus em todas as instâncias em que ocorre no Antigo Testamento?
Texto Estudo de Caso:
A palavra אֱלֹהִים sempre significa Deus em todas as instâncias em que ocorre no Antigo Testamento?
Texto Estudo de Caso:
Livro dos Salmos, capítulo 82 ספר תהילים פרק פב -
Tradução e Análise do Prof. Fabiano Ferreira
פרק פב Capítulo 82
מִזְמוֹר לְאָסָף 1
Um Cântico de Asafe
אֱלֹהִים נִצָּב בַּעֲדַת־אֵל
Elohim assiste na congregação divina (de Deus),
:בְּקֶרֶב אֱלֹהִים יִשְׁפֹּט
No meio dos juízes (deuses) julgará.
2 עַד־מָתַי תִּשְׁפְּטוּ־עָוֶל
“Até quando vocês julgarão injustamente (ilegalmente)
:וּפְנֵי רְשָׁעִים תִּשְׂאוּ־סֶלָה
e favorecerão a presença dos perversos (Selah)?
3 שִׁפְטוּ־דָל וְיָתוֹם
Julguem honestamente o necessitado e o órfão
:עָנִי וָרָשׁ הַצְדִּיקוּ
procedam justamente para com o pobre e o empobrecido.
4 פַּלְּטוּ־דַל וְאֶבְיוֹן
Resgatem o necessitado e o destituído,
:מִיַּד רְשָׁעִים הַצִּילוּ
libertem-nos da mão do perverso.”
5 לֹא יָדְעוּ ׀ וְלֹא יָבִינוּ בַּחֲשֵׁכָה יִתְהַלָּכוּ
“Eles não sabem e eles não entendem, na escuridão caminham,
:יִמּוֹטוּ כָּל־מוֹסְדֵי אָרֶץ
entram em colapso todos os fundamentos da terra.
6 אֲנִי אָמַרְתִּי אֱלֹהִים אַתֶּם
Eu disse: Vocês são deuses,
:וּבְנֵי עֶלְיוֹן כֻּלְּכֶם
e filhos do Altíssimo são todos vocês.
7 אָכֵן כְּאָדָם תְּמוּתוּן
Mas como homens vocês morrerão
:וּכְאַחַד הַשָּׂרִים תִּפֹּלוּ
e como um dos príncipes, cairão.”
8 קוּמָה אֱלֹהִים שָׁפְטָה הָאָרֶץ
Levanta-te, ó Deus, julga a terra.
:כִּי־אַתָּה תִנְחַל בְּכָל־הַגּוֹיִם
Pois Tu repartirás a herança entre todas as nações.
Versão Atualizada
1 Deus assiste na congregação divina; no meio dos deuses, estabelece o seu julgamento.
2 Até quando julgareis injustamente e tomareis partido pela causa dos ímpios? 3 Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o desamparado. 4 Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.
5 Eles nada sabem, nem entendem; vagueiam em trevas; vacilam todos os fundamentos da terra.
6 Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo. 7 Todavia, como homens, morrereis e, como qualquer dos príncipes, haveis de sucumbir.
8 Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois a ti compete a herança de todas as nações. (Salmos 82.1-8 RA)
I) INTODUÇÃO
Nosso objetivo com este breve comentário do Salmo 82 é demonstrar como o conhecimento do hebraico pode permitir-nos deslindar o sentido de um texto que, em si mesmo, parece ocultar nuanças semânticas indecifráveis. Aliás, é temerária a interpretação de um texto como este apenas com base na comparação de versões, como infelizmente o faz a maior parte do povo de Deus hoje. Por não ser muito enfatizado hoje em dia, o estudo do hebraico, do aramaico e do grego koiné é relegado a um plano secundário, de modo que muitos pensam que o conhecimento profundo dessas línguas não seja relevante aos estudos bíblicos. Com pesar, dizemos que até mesmo em muitas academias protestantes ou evangélicas o estudo das línguas originais da Bíblia é desprezado, de maneira que não se percebe com clareza sua importância na vida daqueles que pretendem interpretar a Palavra de Deus. Assim , nosso propósito nesta breve exposição é demonstrar como o conhecimento da língua original pode nos levar à compreensão exata deste texto aparentemente complexo.
Começamos com a observação de que a consideração do lugar vivencial do texto (do Sitz im Leben), do contexto linguístico e histórico, lança enorme luz sobre a tarefa de interpretação. Portanto, primeiramente, nos deteremos no autor, em seu estilo e sua época, em seguida, na intencionalidade comunicativa subjacente à produção do salmo.
Neste salmo, Asafe, o poeta-profeta da velha aliança, contempla como Deus, reprovando, corrigindo e ameaçando, aparece contra os chefes da congregação de Seu povo, os quais têm pervertido em tirania o esplendor da majestade que Deus havia feito repousar sobre eles. Esta é uma característica predominante na abordagem asafeana (veja Salmos 50, 75 e 81): mergulhar na contemplação do julgamento divino e apresentar Deus falando. Discernir o papel das vozes nos Salmos às vezes se torna chave para entender a macroestrutura de um Salmo específico. Asafe revisa as responsabilidades daqueles que são investidos por Deus como seus representantes, como agentes representativos da capacidade jurídica divina e traz-lhes à memória o fato de eles falharem no exercício de suas atividades, prejudicando os desfavorecidos e favorecendo os perversos, o que provocará com certeza o julgamento divino. A sentença será severa e implacável sobre toda a injustiça, a menos que haja arrependimento e mudança de atitude. Esta leitura de Asafe permite-nos avaliar a seriedade de vivermos perante um Deus justo em meio a um mundo tão injusto, sem transigirmos com qualquer espécie de injustiça em qualquer setor de nossa vida. Os juízes, em primeiro plano, e depois os líderes do povo de Deus de um modo geral estão focalizados neste salmo. Isto serve como vetor orientador de nossa análise e levará, por fim, a alguns apontamentos homiléticos.
II) A REUNIÃO DA ASSEMBLÉIA CELESTE
Versículo 1 Deus assiste na congregação divina; no meio dos deuses, estabelece o seu julgamento.
Em primeiro lugar, convém-nos ressaltar que, sem o conhecimento do hebraico, jamais perceberíamos que textos são evocados aqui por Asafe. O estabelecimento de uma intertextualidade seria impraticável se não conhecêssemos o hebraico. Eis aqui a primeira argumentação em favor do conhecimento das línguas originais da Bíblia pelo intérprete que realmente queira exegetar a Palavra de Deus.
Conforme encontramos em Ex 21.6 e em 22.7, a corte de julgamento é chamada de Elohim (אֱלֹהִים-Deus), uma vez que os juízes eram investidos com a autoridade divina para julgar, eram os representantes da capacidade jurídica de Deus. Aqui estão os textos com as marcas necessárias para a identificação e ratificação do que afirmamos:
ו וְהִגִּישׁוֹ אֲדֹנָיו אֶל־הָאֱלֹהִים וְהִגִּישׁוֹ אֶל־הַדֶּלֶת אוֹ אֶל־הַמְּזוּזָה וְרָצַע
:אֲדֹנָיו אֶת־אָזְנוֹ בַּמַּרְצֵעַ וַעֲבָדוֹ לְעֹלָם
21.6 Então, o seu senhor o levará aos juízes (אֶל־הָאֱלֹהִים - el-haElohim) e o fará chegar à porta ou à ombreira, e o seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. (Êxodo 21.6 RA)
ז אִם־לֹא יִמָּצֵא הַגַּנָּב וְנִקְרַב בַּעַל־הַבַּיִת אֶל־הָאֱלֹהִים אִם־לֹא שָׁלַח
:יָדוֹ בִּמְלֶאכֶת רֵעֵהוּ
22.8 Se o ladrão não for achado, então, o dono da casa será levado perante os juízes (אֶל־הָאֱלֹהִים - el-haElohim), a ver se não meteu a mão nos bens do próximo. (Êxodo 22.8 RA)
Portanto, a idéia central do versículo 1 é que Deus está atento às ações dos juízes e, por extensão, dos líderes de seu povo, uma vez que eles estão investidos de autoridade divina, sendo, portanto, os representantes da capacidade jurídica de Deus que, acima deles, é o Juiz dos Juízes.
III) ADVERTÊNCIA AOS MAGISTRADOS
Versículo 2 “Até quando julgareis injustamente e tomareis partido pela causa dos ímpios?”
Vemos aqui uma denúncia aberta das irregularidades no julgamento: injustiça para os fracos e desprotegidos e favorecimento indevido dos perversos. Estas atitudes eram claros indícios de afastamento do padrão de justiça da Lei de Deus. O afastamento da Lei, por decisão voluntária, levava os juízes a se portarem de um modo leviano na presença de Deus, a quem eles representavam. Esta denúncia é semelhante aos oráculos dos profetas do AT, que sempre eram usados por Deus para denunciar toda espécie de injustiça e chamar o povo ao arrependimento. O alvo número um dos profetas eram os líderes (cf. Os 4.1-10; Is 10.1-4).
IV) DEVERES DOS JUÍZES
IV) DEVERES DOS JUÍZES
Versículos 3 e 4: Nestes versículos, Asafe relembra os deveres dos juízes:
3 Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o desamparado.
4 Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.”
Versículo 5 “Eles nada sabem, nem entendem; vagueiam em trevas; vacilam todos os fundamentos da terra.”
Este verso tem a aparência de um solilóquio, de um monólogo. Muitos juízes são inconscientes de sua responsabilidade estupenda. Ser representante de Deus, a ponto de serem chamados de Elohim (אֱלֹהִים), deuses, é uma responsabilidade aterradora! Contudo, vale ressaltar aqui que não há nada neste salmo que favoreça uma visão panteísta.
... vacilam todos os fundamentos da terra - expressão metafórica que alude aos mandamentos que os juízes transgridem, são os preceitos divinos sobre os quais devem repousar todos os relacionamentos humanos e que (na economia em que vivia o poeta-profeta) estão regulamentados na Torah (Lei de Deus). A Torah deveria ser o firme fundamento para o justo julgamento dos juízes. Convém lembrar neste ponto o sábio conselho de Jetro, o sogro de Moisés:
Ex 18.21: Procura dentre o povo homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza; põe-nos sobre eles por chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez; (Êxodo 18.21 RA)
A qualificação moral e espiritual deveria e deve ser o primeiro requisito para quem exerce função de liderança do povo de Deus, para a própria felicidade tanto do líder quanto dos liderados. À guisa de intertextualidade, lembremos do conselho do apóstolo Paulo a Timóteo, 1Tm 4.16:
“Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes.”
V) O CARÁTER DIVINO DA FUNÇÃO DE MAGISTRADO E SUA RESPONSABILIDADE DIANTE DA SUPREMA CORTE CELESTE
Versículo 6: “Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo.”
Os juízes são Elohim, deuses, mas não podem permitir-se o autogoverno. Há um Mais Alto, Elyon (עֶלְיוֹן), perante quem, como filhos e representantes, eles são responsáveis. Não há nada de panteísmo neste versículo, algo como aquela idéia de somos deuses em miniatura ou coisa semelhante. A ênfase aqui é que, com base no contexto linguístico imediato, os juízes estão investidos com a capacidade jurídica de Deus e são seus representantes, por isso são chamados de Elohim (deuses). Eles continuam homens, porém, estão investidos pelo próprio Deus com a autoridade de julgar e fazer justiça de acordo com a Lei de Deus, refletindo assim o seu justo caráter perante o povo de Deus.
Por certo, o melhor comentário deste versículo, além do que já dissemos, é João 10.34-36, que diz: “34 Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses? 35 Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar, 36 então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: sou Filho de Deus?” (João 10.34-36 RA). Há aqui uma referência explícita a este versículo 6 do Salmo 82, que ora comentamos e não à Lei. Será que Jesus havia se equivocado ao dizer que aqueles a quem foi dirigida a palavra divina, investindo-os de autoridade, são chamados na Lei de deuses? Se não conhecêssemos o texto do AT em hebraico, jamais descobriríamos que a corte de julgamento e os juízes são chamados de Elohim no AT. Jesus tinha plena consciência disso, mas quem não sabe hebraico ou não possui um bom comentário, escrito por exegeta que domina essa língua e conhece as referências que citamos a princípio, poderia até supor que Jesus estivesse equivocado. Porém, de um modo indireto, a Lei é citada neste Salmo 82, pois os juízes são chamados de Elohim (אֱלֹהִ֔ים-deuses), em Ex 21.6 e em 22.7. É bom lembrar que, na maior parte das vezes, toda a contradição aparente que alguém ouse afirmar se encontra na Bíblia sempre deriva do fato de seu conhecimento ser limitado em relação à Escritura. Este fato que acabamos de citar poderia levar o indouto a dizer que Jesus fizera uma citação errônea. Seus interlocutores, contudo, que conheciam profundamente a Lei em hebraico, não o replicaram, pois sabiam do que ele estava falando.
Cumpre-nos ressaltar que a expressão idiomática hebraica (בֶּן־הָאֱלֹהִים - Ben-haElohim), filho de Deus, significava, para os judeus, que Jesus estava repleto de todas as características do próprio Deus, revestindo sua natureza, poder e atributos. Seria uma reinvindicação de identidade essencial absoluta. Na concepção judaica, ser filho de é uma expressão idiomática que significa possuir todos os atributos daquilo ou daquele de quem alguém é filho. Daí percebermos porque aqueles homens o acusavam de blasfêmia.
VI) O JULGAMENTO DOS JUÍZES NA SUPREMA CORTE CELESTE
Versículo 7: Todavia, como homens, morrereis e, como qualquer dos príncipes, haveis de sucumbir.
Eis aí a sentença sobre os juízes injustos.
VII) PRENÚNCIO PROFÉTICO DO JUÍZO DIVINO NA PERSPECTIVA DO "JÁ" E DO "AINDA NÃO"
Versículo 8: Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois a ti compete a herança de todas as nações. (Salmos 82.1-8 RA)
Aqui está expresso o anseio do poeta por justiça. Só Deus tem a prerrogativa de julgar o mundo com justiça. Seus representantes quase sempre deixam a desejar. Contudo, baseados em outro estágio mais avançado da revelação progressiva de Deus em sua Palavra, num período bem posterior a Asafe, nós hoje já podemos descansar na certeza de que Deus já tem estabelecido esse dia de julgamento pelo qual o poeta-profeta anelava.
VIII) CONCLUSÃO
Concluindo, vimos com foi importante o conhecimento do hebraico para interpretarmos corretamente este Salmo, escrito originalmente em hebraico. Que este pequeno artigo possa despertar em você o desejo de dar um primeiro passo para começar a trilhar esse caminho reservado aos eruditos: o conhecimento das línguas originais da Bíblia. Espero ter contribuído, de algum modo, para começar a demitificar a tão propagada impenetrabilidade nas línguas originais da Bíblia e demonstrar a insofismável importância do conhecimento delas como ferramenta na difícil tarefa da exegese bíblica.
Prof. Fabiano Ferreira
Prof. Fabiano Ferreira
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